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gora, presa em meus míseros dezessete anos terei que me virar para conseguir fazer algo que nem sei se é possível. Mas como dizem, a esperança é a última que morre, porém a primeira que mata.

No meu caso a segunda parte do ditado não tem serventia.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Prefácio

Nunca pensei que um dia me veria nesta situação... Eu estava prestes a abandonar a vida terrena quando, ao chegar à fronteira, Miguel me deu uma missão. Eu havia me tornado uma deles. Mas porque eu? Não havia outra pessoa a quem ele pudesse confiar isso? Agora, presa em meus míseros dezessete anos terei que me virar para conseguir fazer algo que nem sei se é possível. Mas como costumam dizer, a esperança é a última que morre, porém a primeira que mata. No meu caso a segunda parte do ditado não tem serventia...
O que será de mim daqui pra frente? Me dói a cabeça só de pensar que passarei o resto da eternidade procurando uma agulha no palheiro. Tudo bem que o mundo conspira para dar tudo certo. Meu corpo já está mais do que preparado para isso. Só que ainda duvido que possa conseguir...

1. Isso seria sorte?

Sabe aquele dia que você não está nem um pouco disposta a levantar da cama? Esse é um deles. Eu não estava com nem um pouquinho de vontade de ir para a escola. Tudo bem que a primeira aula de hoje irá deixar qualquer garota bem humorada, mas nem o professor mais lindo do colégio estava me entusiasmando a sair de casa. Eu estava com um pressentimento muito estranho e o sonho que tive esta noite não ajudava muito. Meus pais faleceram antes mesmo de eu aprender a falar “adeus” e só faltavam alguns meses para eu atingir a maioridade e poder me virar com o que eles deixaram para mim. Eu sempre tive tudo o que eu quis menos a sorte de conhecer o verdadeiro significado da palavra família... Eu não queria me juntar a eles tão cedo assim. Tenho muita vida pela frente.
Mas voltando ao meu desânimo para ir à escola, eu duvido que a Miriam vá me deixar ficar no aconchego da minha cama. Miriam é a minha atual governanta. Com seus 27 anos e jeitão de menininha fica difícil receber e obedecer a ordens dela... O único que eu obedeço sem protestos é o Lorenzo. Ele cuida de mim desde o dia que nasci e é o meu tutor... Foi só pensar no “anjo” que o “deus” aparece. Ele bateu na porta, pediu licença com aquela voz que me deixa toda arrepiada e entrou. Pela expressão dele deu para ver que ele havia percebido que eu estava decidida a ficar em casa.
— O que houve? Você não parece estar nada bem. – ele sussurrou ao sentar ao meu lado.
— Não quero sair. Estou com um pressentimento estranho. Sei lá, algo me pede para ficar em casa.
— Mas o ano letivo está quase acabando, você não pode pegar o hábito de matar aula, não é?
— Os alunos geralmente matam a aula para não matar o professor. No meu caso, é para eu não morrer.
— Como assim? – ele me olha assustado como estivesse vendo um sei lá o que na sua frente e torna a perguntar: – Você morrer? Eu sinceramente não te entendi!
— Tive um sonho meio embaralhado... Alguém me chamava, dizia que precisava da minha ajuda e depois meus pais apareciam lamentando perante um túmulo... Eu não gostei disso. – disse isso com lágrimas quase saltando dos olhos por pensar que eu poderia não mais ver aquele belo rosto do meu guardião... Eu detesto assumir isso, mas ele é a minha única razão de viver... Eu não poderia perdê-lo, não mesmo... Tentei me recompor e aguardei por algo da parte dele.
— Não faz assim! Vou acabar perdendo a linha... Quero dizer... – ele pigarreou, parou por um momento como se estivesse se perguntando “Eu falei isso alto?”, respirou fundo e continuou. – Vou acabar me convencendo de que você não está em condições de ir para a escola.
— Bem... Eu gostaria que você se desse por vencido. Não quero ir!
— Não vai acontecer nada. Ande, vou sair para você poder se trocar. Não demore! – dizendo isso ele deu uma piscadinha animadora e se retirou.
Dirigi-me ao banheiro para tomar uma ducha. Enquanto o fazia, mentalizava as roupas que deveriam ser utilizadas. Eu não gosto muito do uniforme, porém o coloquei na minha lista do dia. Terminei rapidamente, me vesti e utilizei uma maquilagem leve, apesar de não precisar, para realçar minha quase perfeição. Não que eu seja orgulhosa, mas levo algumas coisas que me falam a sério.
Desci as escadas calmamente e me dirigi à copa para tomar meu café da manhã. Enzo estava me esperando, e quando me aproximei ele me observou da cabeça aos pés. Eu adorava isso! Meu sangue fervia sob aquele olhar imaculado... Sentei-me a frente dele e tentei comer alguma coisa.
— Kris, você realmente não gosta desse uniforme? – ele me perguntou de repente.
— Não, por quê?
— Você é muito complicada mesmo...
— Novidade!
Ao dizer isso, voltei a prestar atenção em minha salada de frutas. Terminei rapidamente e subi para finalizar meu “look”.
Resolvi ir a pé. Estava com medo. Não queria nada que me trouxesse riscos. Enzo foi comigo para garantir minha segurança. Estávamos a poucos metros da escola quando vi minhas amigas me chamando fervorosamente. Enzo não iria atravessar comigo, porém esperaria eu entrar. Acenei para elas em resposta e me dirigi lentamente à faixa de pedestres.
A pista estava sossegada, como sempre. O tráfego àquela hora da manhã era apenas de adolescentes chegando. Quando dei o terceiro passo em direção ao outro lado, eis que um carro preto voa em minha direção. Quando o automóvel começou a frear, eu já estava no chão sentindo o calor da roda frontal a alguns centímetros de distância da minha cabeça. Ao parar, desviou do meu corpo sensível e arrancou em fuga. Eu não gritei, não chorei, não entrei em pânico... Apenas me deixei levar pela sensação de “quase morri” daquele instante.
Para me tirar daquele transe tentei prestar atenção no que estava acontecendo ao meu redor. Todos os alunos da escola estavam do lado de fora tentando adivinhar, ou ao menos enxergar, meu estado naquele momento. Lorenzo estava quase terminando de atravessar a multidão. Eu fiquei meio com raiva por ele não estar ali há mais tempo. Por só agora conseguir chegar mais perto de mim. Eu queria sair daqui! Queria ir para casa. E queria ele perto de mim...
Ele, sem dizer nada, me pegou no colo e andou rapidamente em direção ao nosso carro que já estava a nossa espera. Pôs-me no banco de trás, se sentou ao meu lado e acenou para o motorista. Permaneceu mudo o resto do caminho e isso me deixava com os nervos à flor da pele. Acabei apagando e só acordei depois, já em minha cama. Para mim foi questão de minutos, porém ao olhar no relógio eu havia dormido por horas. Lorenzo estava sentado na poltrona que fica próxima a minha cama e quando percebeu que eu havia despertado levantou velozmente e se sentou ao meu lado.
— Está em condições de falar?
— Creio que em condições de perguntar. Que Honda era aquele?
— Como sabe que era um Honda?
— Freios ABS e o “H”. Era o Civic LX ou o EX?
— O LX.
— Já descobriram de onde ele surgiu?
— Ainda não... Vão fazer uma varredura.
— Qual é a placa do carro?
— Não sei! Não deu para ver. Nós vamos fazer uma investigação, depois te daremos uma resposta. Vamos ver se conseguimos fotos do carro tiradas por alguém que presenciou o acidente. Se não, vai demorar mais do que o esperado.
— Ótimo! Até vocês descobrirem já jogaram uma bomba na minha cabeça.
— Você pode ficar calma? Não vai demorar tanto assim! É questão de conseguirmos o material para análise... Relaxa!
— Tudo bem. Me faz um favor? Acho que ainda estou com sono, você poderia iniciar a busca enquanto durmo?
— Sim. Bom sono. – dizendo isso me deu um beijo na testa e saiu.
Eu não iria dormir. Só queria ficar sozinha. Liguei meu computador e comecei o meu serviço. Não foi difícil acessar as câmeras de segurança da escola. Vasculhei os últimos arquivos e lá estava. A gravação estava muito ruim por causa da qualidade do equipamento e da distância, mas dava para ver que uma garota havia sido atropelada. Peguei algumas imagens do carro, ampliei, tentei decifrar o borrão que seria a placa, nada... Vi algo que parecia com a letra “K” nas iniciais e o resto eu não consegui entender. Peguei meu celular e liguei para meu colega de classe, o Léo. Ele havia presenciado tudo e acho que ele poderia ter fotos. Não deu nem três toques e ele atendeu.
— Viva, não é? Ou é só seu fantasma, para me cobrar o trabalho de Filosofia?
— Oi! Não, não... Estou vivinha... Você tem alguma foto do acidente?
— Algumas. Estava preocupado com você... Não foram muitas, mas você quer?
— Claro! Mande-me agora, se puder!
— Pode deixar! Agora vou desligar, tenho que ir para a aula. Tchau!
— Obrigada, tchau...
Só foi ele desligar que me chega um e-mail com as fotos. Estavam boas, só que das cinco apenas uma tinha o que eu queria. Lá estava a placa do danado... Comecei a busca pelo proprietário do veículo. Vários minutos de pesquisa e nada constava... Resultado: placa inexistente. Muito bom! Atropelada por um assassino de categoria... Isso era realmente muito legal. Meu celular toca. Número restrito.
— Pronto?
— Admirada por não encontrar nada sobre o carro?
— Não. Decepcionada, talvez...
— Você nem imagina o que está por vir.
— Legal, adoro surpresas!
— Se eu fosse você tentaria não gostar. Tome cuidado. A vida é curta para algumas pessoas!
— Eu não ia perguntar, mas, quem é você?
— Aguarde e saberá. - disse isso e me deixou escutando o “tututu” do telefone.
Eu não estava mais com medo. Estava com raiva. Quem era aquele homem? O que ele queria? Por que eu? Tentei me concentrar e pensar em algo útil. Agora eu tinha que descobrir do que se tratava.
Já passava das 19h30 e nada do Lorenzo aparecer. Levantei e desci em direção à cozinha. Estava com fome. Miriam esbarra comigo no meio do caminho e me olha com espanto.
— Você está bem Kris? Fiquei preocupada!
— Tão preocupada que nem subiu para ver como eu estava!
— Lorenzo pediu para não te perturbar. Disse que você estava dormindo.
— Desobedecer ele de vez em quando é bom! Você anda mostrando que sua atenção é totalmente voltada para ele e não para mim...
Eu detestava ter que fingir, mas eu tinha que tentar colocá-la nos eixos... Era fingimento, pois eu não ligava muito se ela estava ou não preocupada comigo. Enzo sim era importante para mim. Cheguei à cozinha e ele estava lá, pensando, com um copo de leite entre as mãos. Aproximei-me silenciosamente e o surpreendi com um beijo na orelha.
— Você já está aqui!? Dormiu bem?
— Sim! O que você ficou fazendo?
— Pensando com meus botões... Tentei imaginar quem poderia estar por trás daquele acidente, mas não me veio ninguém em mente...
— Conseguiu as fotos?
— Sim, mas não temos nada. A placa parece ser inexistente.
— Com quais letras começa?
— Se não me engano “GJI”...
— São Paulo?
— Sim, por quê?
— Nada não... Só achei estranho. Bem, vou atrás da Anita, estou com fome.
— E eu vou continuar meu serviço. Qualquer coisa você já sabe. - disse isso e desapareceu do meu foco de visão.
Era impossível! Agora pouco o carro era do Rio de Janeiro e agora é de São Paulo... Tem alguma coisa errada... A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi: eles são realmente profissionais! Como que mudaram de placa se nem pararam o carro? Anita não estava por perto, então pedi uma pizza. Enquanto meu lanche não chegava pensei um bocado e lembrei-me do meu amigo Nicholas. Ele é um super cineasta, misterioso, mega inteligente, bonitão, e vive seus dias como se fosse o último. Pouco nos falávamos, porém quando parávamos para conversar... Só algo muito importante nos interrompia. Procurei pelo nome dele na minha lista de contatos e lá estava... Liguei e não deu nem um toque para ele atender.
— Fala gatona! Tudo bem?
— Oi bebê! Tranquilo, e você?
— Tudo ótimo! E aí, o que é que você manda?
— Preciso me aproveitar da sua bondade, isso se eu não for atrapalhar!
— Você não me atrapalha nunca lindona. Pode falar!
— Estou com uma dúvida gigante me martelando! Como é que um indivíduo troca a placa de um carro sem pará-lo ou sem ao menos descer dele?
— Dependendo da categoria do indivíduo, existe um esquema que ele coloca no veículo para trocar a placa durante uma fuga ou algo do gênero... Mas isso é coisa de ladrão profissional... Não é fácil de achar. Por quê?
— Nada de tanta relevância. E como fazem para utilizar placas inexistentes?
— Pesquisam! Para que serve o DETRAN? Isso é moleza para eles, principalmente se tiver algum infiltrado lá.
— Quero que me prometa uma coisa...
— Qualquer!
— Tem certeza?
— Absoluta!
— Se acontecer alguma coisa comigo você vai dar todo o apoio do mundo para o Enzo... Vocês não se conhecem direito, mas o tempo é o melhor remédio.
— Prometo! Mas, por que você está dizendo isso?
— Sei lá! Deu vontade...
— Menina doidinha!
— Hombre fatal! Deixa eu continuar com minhas investigações... See you!
— Hasta la vista!
Ai se eu pego ele! Mas, pedofilia é crime e eu não quero vê-lo atrás das grades por minha causa... Recomponha-se garota! Ando muito... Convenhamos! Voltando ao assunto do carro... Eu estava frita. Primeiro, um atropelamento. Segundo, ameaça por telefone. O que estaria por vir? A campainha toca. Corro até a porta, paro, respiro fundo e abro.
— Sua pizza, senhorita!
— Ah! Muito obrigada! – entrego uma nota de cinquenta para deixá-lo feliz. – Pode ficar com o troco!
Mais um susto desse eu infarto... Subi com minha pizza e assisti um dos meus filmes favoritos pela trilionésima vez. Não sei por que, mas ele é muito inspirador. Só podiam ser americanos mesmo! Roubo de carros não tinha nada a ver com assassinato, mas as manhas que só um bom observador enxergava eram impressionantes. Organizei minha bagunça, olhei a hora, já passavam das 23h, e fui dormir. Amanhã tinha aula e eu não queria faltar mais uma vez...
Eu detestava quando o meu celular me assustava pela manhã. Se existe despertador mais escandaloso que o meu, por favor, me apresente! Levantei-me, morrendo de preguiça, e fui tomar banho. Desci quase me jogando escada abaixo para ser mais rápido, e flagrei Miriam se insinuando para o Lorenzo. Deu-me vontade de voar no pescoço dela, mas me contive e fui até Anita, que por sinal já havia preparado meu café da manhã. Peguei meu prato, me dirigi até a mesa onde eles estavam, me sentei bruscamente e comecei a comer, silenciosamente.
— O que foi meu bem? Aconteceu alguma coisa? – Miriam me perguntou com uma voz bajuladora que me irritava.
— Não, nada não. - por dentro minha resposta era “Tirando o fato de você ter nascido, acho que nada!” – Vamos sair que horas, Enzo?
— As sete, como sempre, por quê?
Balancei a cabeça e continuei a comer. Finalizei e subi correndo, Enzo foi atrás. Entrei em meu quarto, tranquei a porta e fui organizar meu material.
— Kris, abra a porta, agora!
Eu queria ignorar, fingir que ele não estava ali, mas não dava. Terminei de me arrumar e abri a porta antes que ele a derrubasse. Ele entrou, fechou-a, me puxou pelo braço, me encostou na parede, olhou em meus olhos e disse:
— O que está acontecendo? Você e a Miriam se davam muito bem! Foi só ela começar a demonstrar seu carinho por mim que você se revoltou. EU TE AMO!– ele para e dá um longo suspiro. — VOCÊ É A MINHA VIDA E EU NÃO TENHO OLHOS PARA MAIS NINGUÉM! ISSO É TÃO DIFÍCIL DE ENTENDER?
Fiquei sem reação. O que é que ele tinha? Pelo menos agora eu já sei que ele me ama. Não que eu não soubesse, mas agora ele havia provado. Ele se afastou bruscamente e ficou de costas para mim respirando fundo. Eu não sabia o que fazer e simplesmente fiquei parada, esperando alguém quebrar o silêncio. Eu nunca havia ficado sem uma resposta, nunca deixei de rebater ninguém e agora eu estava muda. Pensei por um instante, fui até ele e agi. Agarrei-o com toda a vontade que estava reprimida e beijei-o como se eu fosse morrer naquele instante. Em resposta, ele me olhou nos olhos, sussurrou um “Eu te amo” magnífico e voltou a me beijar fervorosamente. Nosso motorista o chama pelo rádio, quebrando o clima, e Enzo sai sem dizer mais nada. Pego minhas coisas e vou atrás, como um cãozinho fiel ao seu dono.
A primeira aula era de Química. A professora estava bem humorada naquela manhã. A aula passou lentamente. Pouco conteúdo, muitas perguntas sobre o ocorrido... Não tive paz nos primeiros minutos de aula. Mas tudo ocorreu muito bem até a segunda aula.
Era Artes. Nada de bom humor apesar do professor ser o mais alegre do colégio. Não sei por que, mas eu estava com uma vontade imensa de sair da sala. A aula estava legal, mas eu estava ficando entediada. Pedi ao professor para eu ir beber água e saí corredor a fora. Caminhei o mais devagar possível, porém estava começando a querer correr. Tinha a impressão de que havia alguém me seguindo e isso não era legal. Parei perante o bebedouro e fiz o que havia dito que faria. Foi tudo muito rápido. Eu me inclinei, bebi um pouco de água e quando eu ia me levantar senti uma mão segurando um pano para me asfixiar. Tinha um cheiro bom, mas desmaiei em questão de milésimos de segundo.
Acordei em uma sala muito estranha. Muito bonita, mas assombrosa. Móveis luxuosos, decoração muito bem feita, porém tinha um ar bem apavorante. Eu estava louca para gritar, mas me contive. Olhei ao meu redor e não tinha nem sinal de companhia. Onde eu estava? Que lugar era aquele? Uma porta se abre e um homem espantosamente lindo acompanhado de outros dois bonitões se dirige até o divã onde eu estava quase sentada.
— Bom dia! Você está bem?
Uau! Que voz era aquela! Era tão perfeita que me deixou completamente extasiada. Sabendo que se eu fosse falar naquele momento iria gaguejar apenas balancei minha cabeça confirmando meu estado. Sentei-me e esperei.
— Acho que você já deve saber quem sou eu.
Ele começou a passear pelo local e um de seus homens se sentou perante o extraordinário piano de cauda que estava lá e deixou que seus dedos se divertissem sob as escadas compondo assim uma melodia encantadora e melancólica. Já o outro pegou o celular e fez uma ligação. Não demorou muito para o receptor atender e o nome que foi chamado me fez gelar. Ele estava falando com o meu Lorenzo?
— Estamos com sua menina e para tê-la de volta terá que pagar por um preço muito alto... Ah! Você está disposto a tudo? Que coisa melosa! Muito bem, você terá que ser muito obediente a partir de agora. Encontre-me na Catedral hoje às 23 horas... Admirado? Achei que você iria gostar do cenário... Que pena! Não pensamos em um “Plano B”... Por que aqui? Apenas questão de segurança! Estarei no terceiro banco, à direita na fileira do corredor, próximo ao altar. Nada de polícia e nem de companhias. Apenas você... Quanto levar? O preço discutiremos no nosso encontro, se você se comportar. Até breve.
O homem que estava passeando na sala parou, olhou para o que fez a ligação e aguardou alguma coisa.
— “Eu faço o que for necessário! Estou disposto a tudo.” Poxa Gabriel! Não tinha um cara menos meloso com quem eu pudesse marcar a devolução? Esse Lorenzo é muito nojento.
— Deixa de ser chato! Ele ama essa menina. Como é que ele não ficaria desesperado?
Ele se aproximou, se sentou ao meu lado no divã e perguntou:
— Você dormiu bem ou dois dias não foram suficientes? Você está com uma cara péssima. — ironizou. — Ah! Está me surpreendendo! Nunca vi ninguém ser sequestrada e não entrar em pânico. Muito interessante. Théo, por que você não busca o café da manhã de nossa convidada? E Pablo, toque algo menos triste, não estamos em um velório. Ou melhor, pare de tocar e cuide dela.
— Será uma honra!
Ele deixou o piano de lado e veio em minha direção. Gabriel levantou e se sentou perante uma escrivaninha que estava em um canto da sala. Ligou seu notebook e lá ficou. Pablo se acomodou ao meu lado e tentou puxar conversa.
— Não somos tão maus, não é? A maioria dos sequestradores torturam e não são nem um pouco gentis. Nós pelo menos estamos cuidando de você.
— O que vocês querem? Por que eu? – eu ia bombardeá-lo de perguntas, mas ele pôs o dedo indicador em meus lábios me interrompendo.
— Calma! Sou apenas um. Primeiro: queremos dinheiro. Segundo: não te escolhemos aleatoriamente. Você tem história e bastante gente que se preocupa contigo. É linda, meiga, bem, preenche parte dos nossos requisitos, ou melhor, dos requisitos do Gabriel. Mais alguma pergunta? Mas por favor, uma de cada vez...
Eu não tinha mais vontade de perguntar, mas queria escutá-lo falando. Ele não podia ser um criminoso. Como? Com uma voz daquela e aquele jeitão de galã podia estar fazendo algo mais interessante! Ele é pianista. Por que não se dedica à música? Eu tinha que perguntar mais alguma coisa.
— Que horas são?
Ele me fitou com carinho, olhou para o relógio e respondeu de tal forma que me arrepiou até os fios de cabelo que ainda estão pensando em nascer.
— São exatamente 10 horas e 31 minutos. E hora de você comer alguma coisa.
Théo chega com uma bandeja bem charmosa e coloca-a em cima da cama que estava logo atrás de mim. Vendo meu desinteresse balança a cabeça como se dissesse “Vai!” e, preguiçosamente, atira-se no sofá ligando a TV. Eu, obediente, tratei de olhar o que havia sido trago. Quando apreciei, percebi o quanto estava faminta e comecei a comer, silenciosamente. Pablo estava observando cada movimento que eu fazia e eu comecei a fazer o mesmo. Ele é mais atraente do que eu imaginava. Parece ser dono de milhões de segredos que só uma pessoa no mundo além dele poderia saber.
— No que você está pensando? – ele me perguntou curioso.
— Estou tentando calcular o seu grau de mistério. Você parece ser muito interessante.
— Não mais do que você.
— Você tem algo muito singular, sei lá, um brilho diferente...
Ele passou a mão nos cabelos tentando ajeitar algumas mechas fora do lugar e foi aí que percebi algo a mais. Ele tinha uma cicatriz que ia desde o meio do punho até o início da mão. Ela tinha um formato meio estranho, mas relevante.
— O que foi com o seu punho?
— Isso nem eu sei.
— Hey! Quando eu disse que era para cuidar dela me esqueci de avisar que ela voltaria a dormir logo. Théo, por favor... — disse acenando em minha direção.
Logo após a ordem de Gabriel ele veio até a cama, retirou a bandeja e me deu um copo de suco. Foi só eu terminar que o sono me dominou.
Acordei com o balançar do automóvel seguindo para um destino desconhecido para mim. Minha cabeça estava recostada sob o ombro de Pablo e, quando ele percebeu que eu havia despertado, rapidamente me endireitei para não dar o gostinho a ele.
— Já estamos a caminho da Catedral. Preparada para o “Gran Finale”? – Gabriel questionou com curiosidade.
Eu preferi não responder. Não sabia o que estava por vir, então fiquei quieta. Seguimos calados até o ponto marcado. Gabriel parou o carro, esperou Théo descer e seguiu dirigindo. Para onde iríamos agora? Pablo olhou para mim e, percebendo meu espanto tentou me explicar.
— Faz parte do plano. Estamos indo para o Templo da Boa Vontade. Vamos ficar com você lá até Théo e Lorenzo aparecerem. Se algo der errado, aí não sei de mais nada.
— Pare de dar explicações! Assim ela vai ficar sabendo até do que não deve.
Acomodei-me melhor no assento do carro, fechei os olhos e tentei não pensar em nada, porém foi inútil. Chegamos ao Templo e Gabriel desceu rapidamente do carro abrindo minha porta. Logo em seguida, Pablo saiu e estendeu sua mão para me ajudar. Seguimos para o interior do local e, ao entrarmos, Gabriel me pegou pelo braço e me dirigiu até uma cadeira que estava no centro do Templo, me algemou nela e desapareceu. Pablo simplesmente sentou-se em um banco próximo, situado em um ponto escuro que o deixava mais misterioso ainda. Não demorou muito para Théo aparecer, ele entrou armado e acompanhado de Lorenzo. Ao vê-los quase caí no choro, mas me contive, pois teria que prestar bastante atenção a partir de agora.
— É cara, você é um tremendo vacilão... GABRIEL! A decisão agora é sua.
Lorenzo ficou imóvel no local que Théo o deixou. Pablo permaneceu sentado e Gabriel resolveu aparecer. Posicionou-se atrás de mim, fitou Lorenzo por alguns segundos, olhou ao redor e começou a rir.
— Como é que você pode ser tão ingênuo? COMO!
— O que você quer dizer com isso? – Lorenzo perguntou sinicamente, segurando algo no bolso da jaqueta.
— VOCÊ ACHA MESMO QUE É BOM NÃO É? Qual foi a condição imposta? HEIN? Tudo bem, não me importa mais. Quem vai pagar pelo preço é você. Retire a arma do bolso e jogue-a para cá. AGORA!
Enzo fez o que lhe foi determinado. Eu podia ver claramente sua expressão de ódio e medo, mas ele não iria deixar algo a mais acontecer. Olhei ao meu redor e vi a sombra de duas pessoas atrás dele. Quem poderia ser? Nicholas e Miriam? Acho que não! Mais fácil serem policiais. Quando a arma dele atravessou o Templo a minha dúvida foi retirada. Eram mesmo Nick e Miriam, ambos armados e mirando em Gabriel.
— O que vocês preferem? O jeito certo ou o meu jeito? – Nicholas perguntou.
— Larga a arma se não eu atiro! – Miriam disse em um tom autoritário e sexy que fez Gabriel desviar a atenção para ela. – Eu mandei largar a arma!
— Poupe sua beleza, cara Miriam! E, Nicholas, cale-se. – Ele ordenou, apontando a arma para minha cabeça. – Onde está o dinheiro Lorenzo?
— O dinheiro não importa! Ninguém negociou o valor.
— É. Você não cumpriu com sua parte, acho que agora eu tomo as decisões por aqui. Sinto muito Lorenzo.
Gabriel puxou o gatilho e atirou em minha nuca. Antes de tudo escurecer vi apenas Enzo ajoelhado chorando, Pablo gritando com Gabriel e Théo apavorado. Realmente, a vida é curta para algumas pessoas...

2. “Você é minha vida agora...”

— NÃO! NÃO! NAAAAAAAAAÃO!
Eu não sabia se chorava ou se gritava. A dor era grande demais para me deixar tomar decisões. Como ele pôde fazer isso? Eu havia descumprido com minha parte, mas por que matar ela? Por que ela e não eu? Enquanto eu lamentava a morte de minha menina, Pablo tentava entender o motivo do assassinato.
— VOCÊ É IDIOTA, GABRIEL? NÃO PRECISAVA DISSO TUDO! PARA QUE, HEIN? PARA MOSTRAR QUE É O BOM? Fils de catin! Je aussi aime celle!
— Como você ama uma pessoa que nem conhece direito? Larga de ser bobo Pablo, esse negócio de amor a primeira vista não existe!
— Ih, sujou! Os milicos tão entrando... – Théo sussurrou.
Antes que isso realmente acontecesse eles desapareceram. Não deu nem tempo de eu jurar vingança de um modo mais perceptível. Nicholas e os policiais correram à procura deles e eu fiquei com o corpo frio e inerte de minha pequena. Miriam estava observando de longe, sem fazer nada. De repente ela se senta no chão ao meu lado, deita minha cabeça em seu ombro e cai em prantos. O socorro chega e pede para que eu me afaste a fim de que eles possam fazer o seu trabalho e eu, não aceitando a condição, tentei me agarrar ao corpo dela, mas Miriam, ajudando eles, me puxou bruscamente de lá. Eles retiram o belo e singelo corpo de Kristin e se dirigem à ambulância que estava aguardando no lado de fora. O paramédico me avisa que uma pessoa deveria acompanhá-los e a governanta se dispõe a fazê-lo, argumentando que queria ficar mais alguns minutos com sua tão adorada protegida. Kris realmente tinha razão: Miriam era falsa com ela. Agora ela provou literalmente. Empurrei-a para longe e entrei no carro sem hesitar. Ela me olhou com raiva e Nicholas surge. A ambulância entra em movimento, eu recosto minha cabeça no banco e as recordações me invadem.
“Lorenzo, meu filho, a vida da amável Kristin está sob sua responsabilidade. Cuide como se ela fosse completamente sua.”
Eu olhei para aquele minúsculo ser dormindo e me perguntei se a responsabilidade que eu teria agora valeria à pena.
“Mas papai, e se... E se alguma coisa acontecer com ela? E se eu falhar?” Ele me olhou, respirou fundo e disse quase cuspindo as palavras:
“O destino não nos pertence. Faça o que for possível para mantê-la bem.”
Nossa família sempre cuidou dos Fellini geração após geração. E uma das tradições era que os homens, novos ou velhos, se encarregassem de cuidar da menina que nascesse, com ou sem a morte dos pais dela. Eu tinha 9 anos e já possuía uma protegida. Estávamos com os Fellini há mais de três décadas e nada de estranho havia acontecido com eles. Eram muito respeitados por causa da postura e do dinheiro que tinham, porém, além dos admiradores existiam aqueles que tinham ódio e inveja deles. Eu tinha medo de que a novata da família pudesse ser um imã para problemas. Principalmente por estar sob meus cuidados. O tempo foi passando e eu só conseguia ter adoração por ela. Ensinei-a falar, a andar, a apreciar as belezas da natureza... Coisas pequenas que para mim eram enormes e que só me aproximavam mais ainda dela. Chegou então o dia em que seus pais morreram. Ela estava com 14 anos, ficou muito abatida, porém juntos conseguimos vencer a dor da perda. Eu sentia que pertencia a ela cada vez mais e que se a perdesse, mesmo que por um segundo, enfraqueceria. Agora eu estava perante minha falha: a morte dela. Eu não podia decepcioná-la, ela confiava em mim!
Haveria vingança. Eu iria encontrar Gabriel e iria apreciar sua agonia. Não! Eu não vou matá-lo, pois sujar minhas mãos com sangue impuro seria perda de tempo. Ele ainda vai amar alguém. Não vou matar o pobre e ingênuo ser que será capaz de compartilhar uma parte da vida com ele, mas essa pessoa irá fazê-lo pagar, não sob minha ordem, mas seguindo fielmente ao roteiro que o destino escreveu. A ambulância parou e só assim eu voltei ao presente. Olhei para Kris, mas ao fazê-lo me senti tão mal que o paramédico que estava ao meu lado ficou atento, quase que esperando por um desmaio ou coisa do tipo. Dirigi-me lentamente ao IML atrás dos médicos e enfermeiros que estavam com Kris para tratar das coisas consideradas importantes no momento.
Pedi para que Nicholas cuidasse do velório, que seria feito no dia seguinte. Quando cheguei ao local, reparei que satisfizeram ao meu pedido: o caixão estava fechado. Eu não queria ter que olhar para ela daquela forma novamente. Miriam estava comigo o tempo todo, tentando me confortar. Ela podia não gostar de Kris, mas parecia que ela gostava de mim. Isso não é nada bom, pois não vou corresponder aos sentimentos dela.
Minha missão agora era encontrar o assassino e me vingar dele. Mesmo que eu não tenha coragem de fazer justiça com minhas próprias mãos, mas eu quero vê-lo antes do seu inevitável fim.

3. O futuro é realmente imprevisível

Eu afundava em meus pensamentos quando escutei alguém chamar meu nome. Eu estava sozinha em uma praça, linda, deserta e aconchegante. A voz me chama novamente, eu olho ao redor e encontro, encostado em um poste, o dono da autoritária e carinhosa voz. Fico aguardando ele dizer algo, porém o silêncio permanece. Fecho os olhos, respiro profundamente, e ao abri-los o rapaz já estava sentado ao meu lado.
— Olá Kristin! – ele dá um sorriso encantador e abaixa o olhar. Eu ia responder, mas antes ele continuou. – Venho lhe trazer uma boa notícia. Agora que você deixou os humanos lhe foi concedida uma missão: encontrar um dos anjos mais poderosos que nós temos. Caim, por ter sido excomungado de nosso Reino não pode ter a mente penetrada, então você será encarregada de achá-lo.
— Quem é você? Por que eu? – como eu havia aprendido com Pablo, iria fazer poucas perguntas e, se conseguisse, uma de cada vez.
— Pelo visto você adora questionar. – ele esboçou um sorriso e prosseguiu. – Sou o Arcanjo Miguel e você foi escolhida por ser uma garota dotada de uma inteligência única e também por ser encantadora.
— O que isso tem haver?
— Com o tempo você descobrirá. Agora você é um anjo e cuidará das pessoas que ama, além de procurar Caim.
— E como farei isso? Quero dizer, se meu objetivo agora é achar esse anjo, vou ter que vagar pela Terra até encontrá-lo?
— Por que é que você acha que seu corpo não está no caixão, neste exato momento?
— Estão velando meu corpo, quero dizer, o corpo de alguém pensando que é o meu? Então permanecerei assim, com dezessete anos o resto da eternidade?
— Sim para as duas perguntas. Agora vou deixá-la. Se quiser dar uma passadinha rápida no cemitério para ver Lorenzo fique à vontade. Só não deixe ele te ver. Cuidarei para que você fique bem durante sua busca. Até mais!
Ele desapareceu sob a névoa que estava dominando o local. Começou a ficar frio, eu me encolhi no banco encostei a cabeça em meus joelhos e esperei. O frio foi dando lugar a uma brisa leve e morna. Olhei ao redor e estava em um lugar totalmente diferente, parecido com cemitério de filme. Levantei-me do chão e comecei a vagar feito um fantasma, mas paro ao ver um homem saindo de um túmulo muito bonito, parecido com uma capelinha. Minha curiosidade só espera o homem desaparecer e me guia até o local. “Aqui jaz Kristin O. Fellini, Pequena adorada”. Pelo visto capricharam no meu novo cantinho. Tinha algumas fotos, muitas flores e um livro. O livro que Lorenzo lia para mim antes de eu dormir.
Ouço o som de passos se aproximando lentamente e com uma delicada velocidade me retiro do campo de visão do visitante. Era Lorenzo. Ele estava com um jeans preto, pois detestava calça social, e uma camisa da mesma cor, que por sinal era a minha favorita. Ele para diante do sepulcro e deixa uma tímida lágrima rolar pelo seu rosto. Eu não aguentava ver aquilo e então saí sorrateiramente. Por que ele tinha que sofrer daquela forma? Por que eu teria que viver sem ele? Pela primeira vez temi o destino, pois estava sem o meu mestre.
Ao chegar à saída do cemitério deparo com um táxi estacionado. O motorista, pela janela, pergunta:
— Você é Kristin?
— Sim, por quê?
— Isso é para você.
Ele estende o braço e me entrega um envelope azul destinado a mim. Abro e leio:

“Cara Kris,

Eu falei que cuidaria de você e estou cumprindo! Espero que ter visto Enzo naquele estado não tenha te feito mal. Proteger você agora será uma honra... Quando precisar é só chamar.
No verso da folha tem o seu novo endereço. O táxi te levará até lá. Espero que goste da casa, fui eu mesmo que escolhi e decorei.

Até breve,
Miguel

Obs.: O dinheiro que está aí é para pagar a corrida.”

Olhei fixamente para o endereço e fiquei pensando em um bom motivo para eu passar a gostar de uma cidade pequena e sem graça. Eu estava acostumada com exatamente o oposto, creio que vou demorar a me habituar. Chegamos ao endereço indicado e comecei a procurar pelas chaves da casa. O motorista abriu o porta-luvas e me entregou um chaveiro muito engraçadinho que estava lá esperando por mim. Paguei o simpático taxista, desci do veículo e parei diante da bela e adorável residência. Entrei pela porta principal, que já estava destrancada, e comecei a passear pela casa, apreciando cada mínimo detalhe. Finalmente parei em meu novo quarto, que por sinal era mais bonito que o antigo. Deitei-me na cama e tentei imaginar o primeiro local onde eu iria procurar por Caim. E outra, como é que eu iria identificá-lo? Ele teria mesmo uma marca? É, estou com um dever de casa inacabável.

4. Dor ou fraqueza, qual é o pior?

Cheguei em casa prestes a me trancar no quarto para nunca mais sair, porém ao ver minha adega tive uma idéia melhor. Peguei a primeira foto dela que encontrei, o melhor uísque juntamente com um copo e comecei a beber. Caminhando pela sala desisti do copo e passei a tomar diretamente do gargalo. Quando terminei a segunda garrafa, já de olhos inchados de tanto chorar, coloquei a música preferida dela para tocar. Me joguei no sofá e parti para a terceira. Até que isso era bom... Agora entendo porque a bebida é o melhor remédio.
Ouço um som vindo dos fundos. Era Miriam. Ela olha para mim, sorri e se senta ao meu lado. Começa a acariciar minha nuca e eu, fraco, a deixo fazer o que quiser. Sinto suas mãos arrancarem meu cinto, largo a garrafa, agarro-a pela cintura e acabo beijando-a. Ela pede um momento, se afasta um pouco, e com minhas mãos começa a tirar a blusa. Ela volta a me dominar com seu jogo de sedução e quando eu já estava levando-a para o quarto, Nicholas chega.
— Oooooopa! Cheguei atrasado? – ele arranca a camisa, puxa Miriam e sussurra. – Somos três agora... Será que vai ser mais divertido?
Ele desaparece com ela, e eu sem ânimo para brincadeiras que exigissem mais disposição, fiquei na sala até apagar. Acordo com Anita gritando meu nome. Abro os olhos e ela estava ajoelhada ao meu lado, preocupada, talvez.
— Senhor Lorenzo, eu...
— Dá pra falar mais baixo?! Ainda não estou alugando meus ouvidos.
— Desculpe senhor. Estou falando o mais baixo que posso. Algum problema?
— Não, não. É só dor de cabeça.
— Miriam e Nicholas estão lhe esperando para o desjejum. O senhor não vai?
— Sim. – tento me levantar, mas a cabeça estava pesando mais do que o de costume. Me dirijo, quase cambaleando, em direção a copa e vejo, pelas expressões, que a noite deles não foi nada agradável.
— E aí garanhão! Ficou na sala por quê? Medinho? Ou achou que eu não iria deixar nada para você? – ele fez uma cara perversa e olhou para Miriam. – Ela é muito boa cara! Não sabe o que perdeu.
— Cale-se! Você já ultrapassou sua meta por hoje. Foi um momento de fraqueza e... Aff, não tenho que dar explicações a vocês.
Sento-me na ponta da mesa e recosto minha cabeça entre as mãos esperando pelo café. Anita coloca diante de mim uma xícara fumegante, pego-a e dou a primeira golada, que desce tão ruim quanto as primeiras doses de ontem à noite. Miriam fica me olhando com cara de decepção. Claro! Ela não havia conseguido o que queria. Nicholas termina e arrasta ela para fora da copa, me deixando sozinho novamente. Esses dois não me seriam úteis mesmo. Não agora.
Fiquei pensando na melhor forma de vingar a morte de Kris. Isso se eu realmente tivesse coragem. Matá-lo não seria tão doloroso, teria que haver tortura. Mostrar a ele o que é dor. Tentei afastar esses pensamentos, pois esse não era o Lorenzo meigo e gentil que havia criado sua amada, mas sim um monstro sedento por vingança.
Eu havia sido chamado para uma audiência a fim de tratar dos assuntos da Empresa e do Conservatório de Música que seriam dirigidas por ela daqui a alguns meses. Talvez houvesse a leitura completa do testamento de seus pais, pois ele era um mistério até para a Justiça. Eu não me achava digno de tamanha confiança, porém me sentiria lisonjeado com tal responsabilidade. Sempre admirei os pais dela e poder continuar o trabalho deles seria uma honra. Kristin já tinha feito muita coisa após a morte deles, porém eu iria além. Conhecendo os planos dela, agora eu poderia fazer tudo e um pouco mais, pois ela deve ser lembrada sempre, como seus pais.
Miriam e Nicholas teriam que ir comigo para a audiência, infelizmente. Parece que eles estavam no testamento de Kristin, pelo menos foi o que disse o advogado da família.
— Anita, por favor, avise aos outros dois que sairei dentro de meia hora. – disse subindo as escadas.
— Sim senhor! Já estou indo. Algo mais?
— Não, obrigado.
Roupas sociais não fazem o meu estilo, mas quando é necessário eu faço um esforço. Peguei a primeira que vi e me dirigi a um banho mais do que esperado. A dor de cabeça ainda me maltratava e eu estava crente de que a água fria iria ajudar. Terminei de me arrumar e fui direto pegar o carro, sem perguntar pelos desordeiros. Foi só o tempo de girar a chave para eles chegarem e entrarem.
Seguimos em absoluto silêncio até Miriam fazer uma pergunta curiosa.
— Ainda é necessária uma governanta na casa? Não tem como eu exercer minha função, então posso fazer da minha vida o que eu quiser, não é?
— Discutiremos ao voltar do Tribunal. – respondi secamente.

5. Agora é tudo novo de novo

Eu não conseguia acreditar que Miguel havia feito uma coisa dessas comigo. É assim que ele cuida de mim? Já vi que daqui para frente a vida vai ser cruel comigo. O que ele tem na cabeça? Cérebro tenho certeza que não é! Como ele pôde me matricular em uma escola pública? E outra, vou ter que trabalhar! Deve ter algo errado. Ele vai ter que fazer alguma coisa!
Olhei para o novo uniforme morrendo de saudade do antigo. Foi só lembrar do uniforme que meus olhos se enchem de lágrimas. Lorenzo o adorava. Nossa, como ele fazia falta! O que ele diria desse novo uniforme? Era só uma blusa horrenda que em menos de duas semanas estaria cheia de bolinhas. Para piorar era branca com um símbolo tosco na lateral. Me vesti sem ânimo, peguei o material que havia sido providenciado pelo próprio Miguel e saí a procura da escola.
Cheguei dez minutos atrasada no primeiro dia de aula. Culpa dele que não deixou o endereço ou um ponto de referencia! Chegar na sala e ter todos os olhares voltados para mim não seria nada legal. O porteiro me deixou entrar e disse que eu teria que passar na Coordenação antes de ir para a aula. Fui até o local indicado e paro abruptamente na porta ao ver o homem que provavelmente iria me dar uma bronca pelo atraso.
— Bom dia! Em que posso ajudá-la?
— Sou aluna nova, cheguei um pouco atrasada e mandaram eu procurar a Coordenação.
— A coordenadora não está. Sou Samuel, o diretor. Você está com o comprovante de matrícula?
— Seria esse papel? – eu retiro uma folha que estava dentro do caderno e que pelo que Miguel deixou avisado era para ser assinado pelos professores e devolvido para a Secretaria. Entrego para ele e espero a resposta que não tardou.
— Sim Paola. Agora vá para a sala, por favor. Por ser seu primeiro dia o atraso está perdoado.
Mudaram meu nome sem meu consentimento? Já não bastava eu estar ruiva de olhos acinzentados? Eu estava muito bem de cabelos loiros e olhos verdes. Agora eu fiquei literalmente aborrecida! Paola? Não pode ser... Erraram o papel, esse daí não é o meu. Abri meu caderno mais uma vez para olhar os dados pessoais e tirei a conclusão: a partir de agora eu era Paola. Eu teria um pequeno acerto de contas com Miguel assim que o encontrasse.
— O senhor poderia me informar onde ela fica, por favor?
— O Senhor está no céu. – ele diz de forma programada. Balança a cabeça como se misturasse os pensamentos e continuou. - Desculpe minha indelicadeza. Acompanhe-me!
Bem, se eu não entendi errado ele não quer ser chamado de senhor. Menos mal, pois eu não costumava fazer isso. Ele me leva até a sala, pede licença para a professora e diz:
— Bom dia! Vou atrapalhar um pouquinho a aula, mas é por uma boa causa. Vim apresentar a nova colega de classe de vocês.
— CARNE FRESCA, GALERA! – um engraçadinho do fundão grita. O diretor olha meio torto para o garoto, me empurra delicadamente para dentro da sala e prossegue.
— Essa é Paola Horst. Espero que ela se sinta bem aqui com vocês. – observa a turma com uma expressão indecifrável e sai após sussurrar um “Com licença”.
— Olá Paola! Seja bem vinda. Sou Andressa, professora de Filosofia. Espero que goste da escola e, principalmente, da turma. Agora vá se sentar.
Procurei por um bom lugar, mas eu só tinha duas opções: em frente a uma garota loira com um rosto angelical ou ao lado de um garoto meio medonho. Optei pelo lugar em frente à menina, era o jeito mesmo. A professora dá continuidade à aula, demonstrando a cada palavra sua paixão pela Filosofia e isso era cruelmente chato. A loirinha que estava atrás de mim me passou um bilhete e eu, curiosa, tratei de ler.
“Oi Paola! Seja super bem vinda. Não deixe se levar pelas aparências, pois a turma é bem bacana. Espero que possamos conversar melhor depois da aula, você parece ser legal. De sua futura amiga, Diana.”

A menina era simpática. Isso é realmente muito bom. Eu teria alguém para me mostrar a escola e para papear durante o intervalo. Virei o papel e em resposta escrevi.

“Olá Diana! Obrigada pela atenção. Ainda não consegui formar uma opinião sobre a turma, então, não se preocupe. Te vejo no intervalo.”

Passo o bilhete para trás, pego o documento que a professora deveria assinar e vou entregar a ela. Quando ela me devolve o papel o sinal toca. É tão ruim não saber a grade horária. Que aula seria agora? Me sentei e aguardei. Não demorou muito para que um homem alto, forte, de cabelos negros bem abaixo dos ombros presos por um elástico, dono de uma beleza inigualável, entrar dizendo um “bom dia” acompanhado de um sorriso mais que perfeito. Olhei para aquele ser e a imagem de Enzo torna a dominar minha mente. Ainda não existia homem mais lindo que ele neste planeta. Por que eu teria que viver sem ele? Que droga! Tentei voltar o foco para a aula, que por sinal não havia iniciado. O professor me viu e, para me expor um pouco mais exclamou:
— Aluna nova! Maravilha. Já foi apresentada à turma?
— Sim, o diretor tratou de fazer isso ao me trazer.
— Ótimo! Sou professor de Língua Portuguesa. Meu nome é Rafael. Não vou te dizer a frase boba que costumam falar por que gosto de originalidade. Boa sorte em sua nova fase, e espero que possamos te ajudar em sua missão aqui na Terra.
Cruzes! Ele falou como se soubesse de alguma coisa. Não, não! É só minha imaginação. Respondi com um sorriso sem graça e desconfiada deixei minha mente fluir durante as explicações. Literatura era muito interessante, principalmente o Romantismo. Ele até que era um bom professor. Quando estavam faltando poucos minutos para acabar a aula repeti o ritual que haveria de ser feito até eu coletar todas as assinaturas.
A terceira aula não demorou a passar, não sei por que, mas Artes é a aula que sempre me distrai. A professora era meio sem graça, não sabia o que fazer e então nos levou para o pátio e pediu para desenhássemos o que achássemos mais interessante por lá. Tinha um pequeno jardim e ele me encantou. Desenhei-o e ao entregar coloquei a folha de assinaturas junto para adiantar o serviço. Viviane olhou meu desenho e ficou admirada por eu ter sido tão detalhista. Assinou o documento e disse que eu estava liberada da aula.
Me dirigi a um banco próximo ao bloco onde ficavam os setores importantes da escola. Fiquei pensando, distraidamente, até o professor Rafael se sentar ao meu lado e perguntar.
— E aí? Já encontrou alguém que possa lhe ajudar?
— Como assim? – esse cara não é normal...
— Você sabe! Não pode fazer o serviço sozinha, vai precisar de pelo menos um companheiro fiel...
— Eu sinceramente não estou compreendendo! – eu já estava ficando nervosa, o que é que ele sabia?
— O ano letivo não vai ser tão fácil. Você precisa se enturmar, pois os trabalhos geralmente não são individuais.
Respirei fundo, revirei os olhos e esbocei um leve sorriso. Ele está conseguindo me assustar.
— É... Eu realmente vou precisar de companhias.
— Tenho duas indicações. Seriam três se você já não estivesse começando a falar com Diana. São dois rapazes bacanas: Yuri e Alexsander. Ótimos alunos e acho que vocês podem formar um grupo legal. É uma pena que o terceiro ano é o mais ligeiro.
O sinal toca anunciando o intervalo, Rafael pede licença e sai. Diana não demora muito para aparecer.
— Oi! Pronta para conhecer a escola? É pequena, mas tem muito que ser visto.
— Vamos! Vai ser mais fácil conversar fazendo um tour do que sentadas nesse banco.
Passamos os míseros quinze minutos de intervalo nos conhecendo. Como eu havia sido treinada por Miguel, não errei nenhuma frase da minha biografia criada por ele. Eu me espantei com algumas coisas que tive que falar, mas não foi nada tão traumatizante. Diana também falou bastante sobre a vida dela. Como eu, ela era órfã, porém não era infeliz como a maioria das pessoas que ficam sem ninguém. Havia feito várias coisas bizarras e nunca conseguiu se livrar de sua tutora. Sorte a minha de ter tido um tutor mais-que-perfeito como Enzo! Ih! Será que eu teria um tutor ou uma tutora? Aliás, o que Miguel ainda iria aprontar comigo?
Diana não conteve a curiosidade e acabou perguntando o que o professor de Português queria quando conversou comigo. Expliquei a ela que ele havia falado sobre os garotos que poderiam se juntar a nós duas. Eram Yuri e Alexsander.
— Ah! Eles? São bacanas, quer conhecê-los?
— Não custa nada!
Voltamos para a sala e eles estavam lá, discutindo sobre a forma oficial de preconceito expressado no sistema de cotas das Universidades públicas. Diana se aproximou de um jeito delicado, pigarreou e aguardou por um momento de silêncio deles. Como não sei quem é quem, o garoto mais desinibido tratou de não nos deixar esperando muito.
— Olá meninas! Paola? Sou Yuri, é um prazer conhecê-la!
— E eu sou Alexsander, mas passaram a me chamar de Alex ou Lex. Seja bem vinda!
— Obrigada.
— Meninos, por que não formamos um grupo?
— Será uma honra!
— Aprovadíssimo!
O sinal toca: fim do intervalo. Voltei ao meu lugar e pedi a grade horária para Di. A aula seria Física.
— Bom dia! – o professor entrou dizendo. Ele não é tão bonito, porém parecia ter um charme único. Ajeitou o material em sua mesa olhando para a turma e ao me ver sorriu. Diana se aproximou de mim e em tom baixo me alertou:
— Ele só vai conversar contigo quando você for entregar o documento para ele.
— Ufa!
A aula passou lentamente. Enquanto fazíamos alguns exercícios ele começa a fazer a chamada e quando ele estava para fechar o diário fui lá entregar o papel e esperei.
— Tudo bem Paola? Veio de que escola?
— Estou bem, obrigada. Vim do Colégio Militar.
— Hum... E por que saiu de lá?
— Eu preferi terminar o último semestre em regime semi-aberto. - respondi com certa ironia. Ele deu uma leve risada, me devolveu o papel e disse.
— Se precisar de alguma coisa estou aqui!
Gelei. Ele usou a mesma frase que Lorenzo costumava me dizer antes de se afastar de mim. Meus olhos começaram a arder. Eu ia chorar! Voltei depressa ao meu lugar e tentei me controlar.
Estou vendo que vai ser muito difícil eu me acostumar com essa fase.
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